Publicado por Redação em Notícias Gerais - 16/12/2015

Mulheres tarja preta

Elas tomam o dobro de tranquilizantes deles. Meio milhão são dependentes na Espanha

No Brasil, vendas de tranquilizantes está em alta.

Quem já passou por isso sabe. O estômago sobe até a boca. A boca seca. As axilas se encharcam. A coluna fica tensa como se a medula fosse um desses cabos que sustentam as pontes suspensas sobre o abismo, só que ponte é o próprio corpo, e o abismo, o perigo real ou imaginário –mas igualmente intimidador– que está lá fora à espreita. Com o tempo, aprende-se que não é um mal do qual se morre, mas que é mortal viver com ele. A ansiedade é, com a depressão, o transtorno de saúde mental mais comum. Ainda mais nas mulheres. O dobro, segundo a Organização Mundial da Saúde. Os hipnosedantes –tranquilizantes e soníferos– são os únicos psicoativos mais consumidos pelas mulheres do que pelos homens. Mais do dobro, segundo o Plano Nacional de Medicamentos espanhol. Parece lógico. Não é tão simples.

Há idosos que ficam anos e anos só conseguindo dormir se tomarem esses remédios. Executivas que os carregam na bolsa com o último modelo de tablet e o mais glamoroso batom vermelho. Donas de casa que os tomam todas as noites para poder pegar no sono e/ou durante o dia para poder manter os olhos abertos. São os comprimidos, assim, em geral, como são conhecidos popularmente. Os hipnosedantes, ou benzodiacepinas, são as drogas mais consumidas na Espanha depois do álcool e do tabaco. No total, 12% da população as usa, o dobro de 2005. A porcentagem sobe para 16% nas mulheres, entre as quais se estima haver mais de meio milhão de dependentes da única droga legal que necessita de receita médica.

São esses pequenos discos brancos chamados Orfidal, Tanxilium, Lorazepam, Lexatin, Valium ou Trankimazin. Um fármaco barato (um par de euros, cerca de 8 reais, a caixa de 50 com receita pública), eficaz no curto prazo e sem grandes efeitos secundários. Ajudam a dormir. A domar a fera que te devora por dentro. A manter a cara boa durante o tempo ruim. A poder com a vida, sim. Uma pechincha, em teoria. Uma balinha. Por isso estão entre os fármacos mais receitados na Espanha, o país da Europa onde seu consumo mais cresceu por causa, mas não só, da crise econômica. No entanto, em troca de sua eficácia, os comprimidos têm uma grande capacidade de causar dependência. Certas pacientes necessitam de cada vez mais doses. E muitas vezes médico e paciente sabem quando iniciam um tratamento, mas não quando param. No Brasil, o quadro também inspira preocupação da Anvisa, a agência sanitária brasileira. De janeiro a setembro deste ano, 18 milhões de caixas de remédio a base de clonazepan (como o Rivotril) foram vendidos, segundo números citados pela oficial Agência Brasil. Diversos levantamentos mostram que o tipo de medicamento está sempre entre os três com distribuição controlada mais vendidos no país, com alta superior a 40% desde 2007 —um dos maiores mercados do mundo para o produto.

Alexia, uma mulher loira e bonita que não aparenta seus 36 anos, arregaça as mangas para esquentar as mãos. Está gelada, embora o cômodo esteja aquecido, e a voz treme quando fala. Os problemas familiares e seu caráter introvertido a levaram ao médico ainda na fase da adolescência e, desde os 19 anos, usa benzodiacepinas. Quando tentava deixá-las, piorava. Foi, diz ela, a 16 ou 17 psicólogos. Nenhum pôde livrá-la disso. “Mudaram o remédio, de dose, mas não melhorava. A cada vez precisava de mais, e cheguei a tomar seis comprimidos por dia. Passava o dia em estado de sonolência, vivendo em uma prisão dentro de minha casa e meu corpo. Quando você fica assim, não escuta ninguém. E você também não acredita que é uma viciada quando está tomando algo que um médico te receitou”, conta. Juan, seu marido, um homenzarrão que demonstra uma grande paixão por ela, está acostumado com a incompreensão alheia. “Se você vive com ela, sabe como sofre, mas as pessoas não acreditam que alguém que tem tudo esteja assim. E você tampouco consegue explicar o círculo vicioso em que está metida sem deixar de ter ido ao médico”, confessa.

Alexia e Juan seguem tratamento terapêutico no TAVAD —Tratamentos Avançados da Dependência—, uma clínica privada onde Juan José Legarda, psicólogo, tira o hábito de dependentes de todo o tipo. Alexia esteve cinco dias hospitalizada para superar uma síndrome de abstinência que é, segundo Legarda, “pior que a da heroína”. Aguarda-a um tratamento de um ano no qual aprenderá a cuidar-se e a usar seu potencial para superar a ansiedade. “Estou mais consciente de mim mesma, mais esperançosa”, diz com um fio de voz que denota que ainda tem caminho pela frente.

Enric Aragonés, coordenador de saúde mental na Sociedade Espanhola de Medicina de Família e Comunitária faz autocrítica. “Receitamos muitas benzodiacepinas e nem sempre controlamos seu uso”, admite. “É um recurso fácil para o médico e o paciente. As normas aconselham a não prolongar o tratamento além de quatro ou seis semanas. Mas não é tão simples. Os processos de ansiedade e depressão são longos, o tempo de consulta, curto, e o grande poder desses fármacos de criarem um hábito torna muito difícil retirá-los. Deveria haver mais consciência entre os profissionais e um sistema de alerta que nos avisasse do risco.”

A endocrinologista Carme Valls, diretora da oficina Mulher, Saúde e Qualidade de Vida, do Centro de Análises e Programas Sanitários da Catalunha, sustenta que o dobro de prevalência da ansiedade nas mulheres não é casual. “Os hormônios nos condicionam, mas não nos determinam”, afirma. “Temos uma morbidade diferenciada que nos predispõe, como a falta de ferro associada à menstruação, à tireoidite ou às doenças autoimunes. Mas logo vêm as causas sociais: a dupla jornada, o ninho vazio, a solidão, a pobreza. Não sou fundamentalista, receito ansiolíticos, mas se afinarmos o diagnóstico não seriam prescritas nem a terça parte. A maioria das ansiedades seria aliviada sem eles.”

Os médicos citam a deterioração da memória como um dos possíveis efeitos do uso prolongado de ansiolíticos. Mas, às vezes, é mais urgente relaxar. Por isso, esta noite, mais de uma, exausta de tanto dar voltas na cama, colocará um comprimido sob a língua e amanhã será outro dia.

Eles bebem, elas se medicam

As mulheres se consolam de seus males e seus nervos com comprimidos, e os homens com álcool. Nos países desenvolvidos, 1 em cada 5 homens adquire dependência vitalícia do álcool, para 1 de cada 12 mulheres, segundo a OMS. Para cada trabalhadora que bebe diariamente, há quatro homens, segundo a Pesquisa de Álcool e Drogas no Campo do Trabalho na Espanha. Médicos e psicólogos certificam que eles são mais propensos às dependências e menos predispostos a recorrer ao médico, e os medicamentos requerem receita. Elas expressam seu sofrimento, pedem ajuda e acatam a prescrição do profissional. As benzodiacepinas aliviam seu mal-estar e não têm associada tanta conotação de prazer ou de vício, como o álcool, malvisto por muitos, inclusive por elas. A ansiedade feminina, e seu tratamento com fármacos, faz parte do imaginário contemporâneo. Basta recordar da cena em que Carmem Maura droga Antonio Banderas com um gaspacho empanturrado com os comprimidos com os quais ela havia tentado suicidar-se em Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos. Ou a série Desperate Housewives, onde donas de casa patricinhas descontam a angústia da convivência com filhos e maridos, ou a ausência deles, com química. A realidade tem menos graça. A vida pode ser muito dolorosa.

Fonte: El País Brasil


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