Publicado por Redação em Vida em Grupo - 30/05/2011
Mais uma ameaça à independência judicial
Uma das conquista do sistema político ocidental moderno é a separação dos poderes - ou, para muitos, das funções - do Estado. Ao contrário do monarca absolutista, que enfeixava e simbolizava o Poder, a organização política dos Estados Ocidentais consagra o princípio da separação dos Poderes.
No Brasil, o legislador constituinte foi especialmente cioso na defesa desse princípio, tanto que estabeleceu como cláusula pétrea a sua defesa, imune a alterações por parte do Poder Legislativo. Alinhou-se à Constituição Portuguesa, que igualmente fixa como limite material de revisão a "separação e a interdependência dos órgãos de soberania", colocando-os a salvo de alterações constitucionais. Outros ordenamentos jurídicos, como o alemão (art. 79 (3) c/c art. 20 (3) e o russo (art. 135 (1) c/c art. 10) seguem esse princípio, uma vez que a abolição da separação de poderes significaria o fim do regime democrático como o conhecemos hoje.
É certo que a tripartição de poderes, rigidamente definida, não ocorre na atualidade, pois os chamados Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo exercem funções que não são predominantemente suas; mas é igual correto concluir que suas funções preponderantes são aquelas para as quais para as quais foram organicamente concebidos. É essencial para a garantia do Estado de Direito que sua independência seja garantida.
A teoria da separação de poderes foi desenvolvida por Montesquieu em seu clássico "O Espírito das Leis". Embora relegasse os julgadores à função mecânica de repetir as palavras da lei e não visualizasse um corpo profissional de juízes, o francês os concebia como partes de uma função separada do Estado.
Nosso poder judiciário moderno está bem mais próximo da concepção de Alexander Hamilton, cujas preocupações com a preservação da independência e autonomia do Poder Judiciário prenunciam embates que seguem até a atualidade. Após concluir que "o Poder Judiciário é sem questão alguma o mais fraco dos três" e, "por isso mesmo, não pode atacar nenhum dos dois outros com boa esperança de resultado", "é necessário dar-lhe todos os meios possíveis para que possa se defender dos outros dois". "Pela sua fraqueza natural, o Poder Judiciário está sempre em risco de ser intimidado, subjugado ou seduzido ela influência dos poderes rivais". Conclui Hamilton: "A independência integral das cortes de justiça é particularmente essencial em uma Constituição limitada.
Ao qualificar uma Constituição como limitada, (...) que ela contém certas restrições específicas à autoridade legislativa (...). Limitações dessa natureza somente poderão ser preservadas na prática através das cortes de justiça, que têm o dever de declarar nulos todos os atos contrários ao manifesto espírito da Constituição" (O Federalista, nº 78, Coleção Os Pensadores, Federalistas, Abril, 1973, p. 168).
Essa visão, ainda moderna, encontra-se em harmonia com a doutrina de Antoine Garapon, para quem cabe ao judiciário o papel de guardião das promessas, ou de realizador e concretizador dos princípios constitucionais abstratos; para exercê-lo, o Judiciário deve ser independente e Hamilton é claro que não há liberdade que os juízes estiverem sob o jugo de outros poderes.
A persistência do pensamento autoritário, que tantas vezes imperou no cenário político brasileiro, ocultou por muitos anos a autonomia do Poder Judiciário, a quem foi subtraído, em épocas de exceção, a possibilidade de avaliar atos dos regimes ditatorais que se sucederam em nosso país. Desde 1988, nosso Estado Democrático de Direito não se coaduna com intervenções externas no Poder Judiciário, a ponto de inscrever como princípio a inafastabilidade da tutela jurisdicional e, como cláusula pétrea, a separação de poderes. Nesse sentido, apesar das intromissões institucionalizadas e indevidas do Executivo, com a nomeação de juízes, vivemos um quadro constitucional que afirma a independência do Poder Judiciário.
Não raro, vozes mal acostumadas com essa garantia da cidadania, órfãs de um modelo autocrático, se levantam e atentam contra o Poder Judiciário. O último atentado consumou-se no oferecimento da EC 3/2011, de autoria do deputado Nazareno Fonteles (PT-PI), que incorpora e consolida os argumentos em favor da redução do Judiciário a um apêndice dos outros poderes. Segundo notícia da agência da Câmara e do site do deputado, Fonteles entende que o Supremo Tribunal Federal interfere no funcionamento do Congresso "quando interpreta certas leis". Argumenta que estamos caminhando para um modelo de "ditadura do Judiciário", a exemplo dos Estados Unidos, onde há duzentos anos o Poder Legislativo tem sua competência usurpada; acusa o Judiciário de criar normas, a exemplo do aborto de fatos anencefálicas e o uso de células tronco, dentre outras.
Discorrer e defender o ativismo judicial seria dar demasiada importância aos argumentos do deputado, que remanescem no obscurantismo de três séculos atrás. Aliás, quem sabe a "ditadura do Judiciário" americana não seja a responsável pela lamentável situação de penúria que nosso pobre vizinho do norte atravessa... A flagrante inconstitucionalidade da proposta que permite ao Poder Legislativo suspender atos do Poder Judiciário é patente, assim como a confissão de que o deputado não se sente à vontade em um regime democrático, onde um sistema de freios e contrapesos permite que a democracia seja exercida pela convivência harmônica entre os três poderes.
Espera-se que a Comissão de Constituição de Justiça e de Cidadania declare incontinenti a inconstitucionalidade do projeto, sepultando pretensões autoritárias que não se coadunam com o modelo constitucional brasileiro.
Fonte: www.direitonet.com.br | 30.05.11