Publicado por Redação em Gestão do RH - 05/02/2020

Empresa que fala em estratégia digital está atrasada



Olá,

A partir de hoje, vamos contar neste espaço os desafios, erros e acertos de empresas e pessoas que se transformaram – ou estão no meio do processo – para manter a relevância em meio a novíssimos modelos de negócios e habilidades. A ideia é que as histórias trazidas aqui sejam uma inspiração para quem está neste caminho ou quer começar agora a fazer suas próprias revoluções digitais. Vamos falar de empresas e carreiras, mostrar o que está sendo feito lá fora e aprender junto com quem encontrou soluções. Não há uma única receita para mudar e evoluir, então vamos analisar um punhado delas. Vem com a gente!

Dono de marcas como Telhanorte e Quartzolit, o grupo francês Saint-Gobain viu seu braço brasileiro mergulhar em um processo radical de transformação digital nos últimos cinco anos. A companhia fundada há mais de três séculos investiu em parcerias com startups e em programas de incentivo ao empreendedorismo interno, entre outras medidas, para mudar o foco da inovação, antes restrita ao “chão de fábrica”. O processo envolveu mudanças profundas na cultura da organização, e parte dos tomadores de decisão foi trocada.

“Sempre tivemos bons números, mas tínhamos poeira nas costas”, afirma o CEO na América Latina, Thierry Fournier, em entrevista exclusiva ao Revoluções Digitais na sede da empresa em São Paulo. O estalo para a mudança veio depois de uma viagem ao Vale do Silício, nos EUA, onde Fournier diz ter levado “um choque”. Hoje, afirma, depois do que chama de “evangelização” dos 17 mil funcionários, não se fala mais em inovação dentro do grupo – é um processo incorporado ao cotidiano. “Quando uma empresa fala ‘preciso de uma estratégia digital’, ela está superatrasada”, diz.

 

De onde veio a iniciativa para mudar todo o grupo Saint-Gobain no Brasil?

Cheguei ao Brasil em meados de 2014 e, após alguns meses, fui com outros executivos do grupo para o Vale do Silício fazer uma “learning expedition”. Passamos ali quase uma semana, encontrando empresas digitais superavançadas. Foi um choque. Na volta, chamei nossa diretora de RH e falei: “Nossa empresa é muito boa, mas é muito antiga. Tem poeira nas costas. Temos de chacoalhar um pouco nossa organização”. E decidimos lançar um programa de transformação com três pilares: digital, inovação e foco no cliente.

Como mudaram a cultura de inovação da empresa?

Faz 7 anos consecutivos que estamos na lista das 100 empresas mais inovadoras do mundo, de acordo com o ranking da Thomson Reuters. Temos 4 mil pesquisadores, investimos 400 milhões de euros em pesquisa e desenvolvimento, publicamos mais de 400 patentes por ano. Mas nosso processo de inovação era muito lento. Então lançamos uma transformação simples, com a introdução de ferramentas de inovação como design thinking. Fizemos um evento com os principais executivos e forcei todos a usarem essas ferramentas. Depois de 5 anos, somos uma empresa totalmente diferente. Ninguém mais fala em design thinking, é o dia a dia de todo mundo. Dessa forma, a gente inova muito mais cedo e rápido, e estamos mais perto do cliente.

Tiveram de fazer parcerias?

Abrimos nosso processo de inovação para o exterior, cooperamos com todas as universidades. Entramos em várias incubadoras, fazemos parte dos parceiros-fundadores do Cubo (centro de empreendedorismo tecnológico criado pelo Itaú) e 85% das nossas ações de marketing digital envolvem no mínimo uma startup. Já compramos parte de duas startups e continuamos investindo nelas. Desenvolvemos produtos com clientes, fornecedores e outras empresas.

E como funciona o processo de criação dentro da empresa?

Cooperar com startup é uma coisa, mas o melhor é trazer para dentro da casa o espírito de empreendedorismo. Uma startup tem criatividade, energia, vontade de fazer, agilidade. Por outro lado, uma empresa como a nossa tem recursos, estrutura, processos, meios e ferramentas. A combinação dos dois faz diferença. Montamos um grupo de empreendedores internos e o papel deles é trazer para dentro esse espírito de empreendedorismo.

Qual caso deu o melhor resultado dentro das empresas do grupo?

Nosso programa de empreendedorismo interno, o InPulse. A ideia é dizer para os funcionários: vamos montar startups, vocês têm boas ideias, vamos implementar. Foi um show. Na primeira edição, tivemos 58 projetos vindos de quase 200 funcionários. Estamos lançando a segunda edição e tenho certeza de que teremos 200 projetos de todo o Brasil. Fizemos tudo com custo quase zero. Você só precisa contar com a vontade das pessoas, de sair da zona de conforto, de demonstrar a capacidade delas, esse é o ativo mais importante que você tem: a vontade das pessoas de fazer.

Por que um dos oito centros de pesquisa e desenvolvimento mundiais da Saint-Gobain fica no Brasil?

Temos todos os recursos do grupo aqui, e uma participação muito ampla em todos os mercados. Precisávamos de meios para sustentar essa posição no mercado brasileiro. Abrimos esse centro faz 3 anos e meio e chegou agora à velocidade de cruzeiro. Graças à Lei do Bem (de benefícios fiscais) e ao financiamento da Finep (empresa pública de estímulo à tecnologia), esse centro não nos custou quase nada. Não entendo por que as empresas não correm para seguir o nosso exemplo.

 

Como foi o processo de mudança na prática?

Éramos uma empresa pré-histórica no digital em 2015. A primeira coisa que fiz foi recrutar uma pessoa reportando para mim, mas totalmente diferente do pessoal tradicional da Saint-Gobain. Uma pessoa supercriativa, supercarismática, que conhecia tudo de digital, mas nada da Saint-Gobain. Ela tinha quatro papéis: o primeiro era evangelizar o time para a transformação digital. Em 3 anos, treinou 17 mil funcionários, foi a todas as fábricas para apresentar o que é o digital hoje, qual o papel das redes sociais, o que as empresas estão fazendo com o digital, por que é importante, blá, blá, blá, coisas básicas. Em vez de ir para a Lua, é melhor começar fazendo uma coisa simples. O segundo papel do CDO (chief digital officer) foi explicar as ferramentas digitais que tínhamos. Passamos de 15% de uso dessas ferramentas para 40%. O terceiro papel é o mais importante: desenhar a jornada do cliente do ponto de vista digital, seja com app, com internet, com qualquer coisa. Isso foi difícil. Você pede que duas pessoas do mesmo negócio desenhem a jornada do cliente e você terá duas respostas diferentes. Foi a primeira aprendizagem: entender a jornada do cliente e identificar onde fazia sentido interagir digitalmente com ele. O quarto papel foi implementar todas as ferramentas de marketing digital para aumentarmos a presença nas redes sociais.

Em que ponto da transformação digital vocês estão agora?

Agora não precisamos mais de um CDO. Todos os negócios estão digitalizados, não têm mais uma estratégia digital. O digital é o meio para implementar a estratégia. Quando uma empresa fala “eu preciso de uma estratégia digital” ou “eu tenho uma estratégia digital”, ela está superatrasada. Não temos mais uma estratégia digital, o digital faz parte da estratégia.

Como vocês deram mais foco para a relação com o cliente final?

Somos uma empresa que tem 354 anos de história. Fomos criados por Luis XIV, que queria construir o Palácio de Versailles. Naquela época, os franceses não tinham a tecnologia para fazer vidro, então mandaram uma equipe para a Itália e “roubamos” a tecnologia e alguns italianos junto para ensinar os franceses como fazer vidro. Ou seja, somos uma empresa de engenheiros, gostamos da produção, da fábrica. Até 15, 20 anos atrás, toda inovação era feita no chão de fábrica. Não funciona mais assim. Quem comanda é o cliente final. Para uma empresa de engenheiros, foi uma revolução, mudar de uma certeza de saber melhor que o resto do mundo para uma humildade comercial para entender o que o cliente final pede.

Como vocês treinaram o pessoal?

Montamos um MBA interno, especialmente para os jovens talentos. Já fizemos duas turmas e a terceira vai começar. É um programa de um ano, um ano e meio, de altíssimo nível, com professores brasileiros e estrangeiros para treinar a futura geração, para transformar um grupo de engenheiros em um grupo de comerciantes. Essa academia virou um sucesso quase mundial dentro da Saint-Gobain, todo mundo está copiando. A maneira de gerenciar o negócio também mudou. Os KPIs (indicadores de performance) não são mais só os indicadores de fábrica, mas também a satisfação do cliente, a qualidade, número de visitas, perfis, coisas mais de uma empresa voltada para os consumidores finais.

Vocês tiveram de mudar o perfil das pessoas que trabalham na Saint-Gobain?

Hoje os jovens que entram no nosso negócio estão diferentes. A geração nova trabalha de outra forma, muito mais colaborativa, menos vertical. É muito mais fácil receber essa nova geração. Falo pessoalmente com eles e os forço a chacoalhar a organização.

Nos altos cargos também? A Telhanorte mudou 60% da direção nesse processo. E no grupo como um todo?

Com certeza temos perfil de liderança diferente do que 5 anos atrás. Os diretores são mais jovens, tive de substituir alguns que se aposentaram, foi uma oportunidade para trazer sangue novo.

Havia medo de errar por parte dos executivos? Foi preciso mudar a cultura da empresa para que houvesse mais tomada de risco?

Sim. Por isso comecei com a evangelização. Quando você evangeliza, tem a força do número. Todas as pessoas da sua organização querem fazer. Como um gerente de negócio um pouco antigo, que trabalha há 40 anos na Saint-Gobain, vai resistir à pressão de 300 funcionários do negócio dele que querem fazer? Não tem como. Foi assim que quebrei as resistências mentais.

Mesmo assim ele pode continuar com medo de errar e ser demitido.

Sim, (pode errar) duas, três vezes, e depois vou trocar. Foi o que aconteceu em vários negócios.

Quais foram os principais resultados da transformação digital?

A cada ano crescemos muito mais que o mercado. Nosso desempenho comercial acelerou bastante. Analisando estrategicamente, nos últimos 5 anos ultrapassamos o mercado entre 3 e 4 pontos por ano. Em geral, todos os negócios da Saint-Gobain no Brasil ganharam participação de mercado.

Quais os próximos passos?

Lançamos muitas iniciativas, a última, para completar tudo o que a gente fez, foi a indústria 4.0, coisa que iniciamos 2 anos atrás, com a mesma metodologia: evangelizar o time, explicar o que é, como funciona, o que é inteligência artificial, internet das coisas, e depois fazer treinamento. Temos milhares de projetos, vamos investir R$ 80 milhões em 2 anos só para indústria 4.0. Temos já projetos em andamento que são muito interessantes, estão melhorando os processos, reduzindo o impacto no meio ambiente, reduzindo custos, melhorando a produtividade e a eficiência. 

O que não fazer nesse processo de transformação digital?

Não fazer é o pior erro que a gente poderia cometer. Nessa jornada erramos bastante. Claro que tivemos fracassos. Investi R$ 3 milhões em um projeto que não deu certo. A ideia foi vender publicidade em nossos sites de corporativo e marcas. Não funcionou. Tudo bem. No papel era brilhante, mas a execução foi um fracasso. Tivemos outros fracassos. O fracasso é a melhor maneira de aprender. Você pode errar uma vez só e parar rápido. O pior é não tentar.

Qual conselho o senhor dá para quem está começando a transformação digital?

Escolher as batalhas. Você não pode fazer tudo ao mesmo tempo. Tudo que falei aqui foi feito em sequência. Em primeiro lugar, você deve ter uma equipe central empática e supercarismática, pessoas que saibam evangelizar. Pessoas que realmente sabem comunicar, escutar, motivar e engajar. Você não precisa de experts, mas ter pessoas dentro da casa que sabem ler competências é o mais importante para gerar motivação, engajamento.


Fonte: ESTADÃO


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