Publicado por Thiago em Mercado - 04/06/2021
Como princípios de gestão controversos fizeram da Netflix um sucesso
Fui visitar a sede da Netflix, em Los Gatos, Califórnia. A razão é que preparava mais uma Expedição Internacional de Educação Corporativa. Já havia realizado tais viagens pela FIA havia um par de anos. Com o auxílio de um amigo, consegui estabelecer o contato com a Netflix. A visita em nada decepcionou. Tinha uma sede como se esperaria de uma empresa moderna e inovadora do Vale do Silício e fui recepcionada com muita gentileza. Estava ansiosa para conhecer a fundo o seu Modelo de Gestão de Pessoas, bem como o seu Sistema de Educação Corporativa (SEC).
O bate-papo com meu anfitrião foi interessantíssimo, mas certamente não atendeu às minhas expectativas. Motivo? Não havia um SEC. “Se eu quiser fazer qualquer curso que julgue importante para meu desenvolvimento, peço para pagarem, vou lá e faço. E, depois, não há grandes exigências em termos de controle. O importante é que eu inove. Meu salário?” Finalizou dizendo que era o maior do mercado. Pensei cá comigo: será mesmo que é assim? Ou não? Ficou a dúvida…
Passam-se os anos e cai-me nas mãos o livro A Regra é Não ter Regras: a Netflix e a Cultura da Reinvenção (Intrínseca, 2020). De fato, sua leitura confirma que os depoimentos lá ouvidos eram realistas e expressavam uma cultura muito diferente da que se encontra em geral nas organizações.
O livro foi escrito a quatro mãos, por Reed Hastings e Erin Meyer. Ele é cofundador, CEO e filantropo. Formado em Bowdoin College e Stanford, foi professor voluntário do Corpo da Paz no sul da África e presidente do Conselho de Educação do Estado da Califórnia. Em 1997, fundou a Netflix – empresa que viria a revolucionar a indústria do entretenimento.
Erin é autora do livro The Culture Map e professora da Insead. Seu trabalho já foi publicado em periódicos como Harvard Business Review e The New York Times. Hastings uniu-se a ela para falar, pela primeira vez, sobre a cultura que transformou a marca em sinônimo de criatividade e adaptação. Os autores explicam como princípios de gestão controversos fizeram da Netflix um exemplo de inovação e sucesso global.
O livro inicia com um relato de Reed sobre a lendária visita dele e do sócio Marc Randolph ao CEO da Blockbuster, com o intuito de vender-lhe a Netflix, ainda uma startup.
“A Blockbuster é mil vezes maior do que nós, sussurrei para Marc quando entramos em uma sala de reuniões no 27° andar da Renaissance Tower, em Dallas, no início do ano 2000.” Era a sede da Blockbuster Inc., na época uma gigante de US$ 6 bilhões que dominava o ramo de entretenimento, com quase 9 mil locadoras em todo o mundo. John Antioco, seu CEO, era considerado um estrategista, ciente de que o mercado logo seria sacudido por uma internet onipresente e super-rápida.
A Netflix, por sua vez, contava com cem funcionários, 300 mil assinantes e, naquele ano, as perdas totalizariam US$ 57 milhões. Reed e Marc estavam ansiosos para fechar um acordo. Quando Antioco perguntou quanto a Blockbuster teria de pagar pela Netflix, eles responderam que seriam US$ 50 milhões. Antioco recusou categoricamente. Os dois partiram desapontados. Reed relata que, quando se deitou naquela noite e fechou os olhos, visualizou todos os 60 mil funcionários da Blockbuster explodindo em gargalhadas com a proposta ridícula que haviam feito.
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Em 2019, apenas uma única locadora de vídeo da rede Blockbuster ainda permanecia aberta. Já para a Netflix, o ano de 2019 foi digno de nota: o filme Roma foi indicado na categoria de Melhor Filme e ganhou três Oscar. Tal conquista a transformou em uma empresa de entretenimento completa.
Há muito deixaram o negócio de DVDs por correio para se tornarem não apenas um serviço de streaming com mais de 180 milhões de assinantes em 190 países, mas também uma grande produtora dos próprios filmes e programas de televisão, voltados para o mundo todo. E a pandemia do novo coronavírus certamente expandiu seus negócios. Destaque-se que a Nettflix investe pesado no mercado brasileiro: foram 30 produções em 2020, com um aporte de R$ 350 milhões.
Quem estará gargalhando hoje?
Para Reed e Marc, não era óbvio à época, mas eles tinham uma coisa que a Blockbuster não tinha: uma cultura que colocava as pessoas acima dos processos, que enfatizava mais a inovação do que eficiência e controles.
“Nossa cultura – focada em alcançar o melhor desempenho dada a nossa densidade de talentos e em liderar as nossas equipes com contexto em vez de controle – permitiu crescer e mudar continuamente, à medida que o mundo e as necessidades de nossos assinantes se transformavam à nossa volta”, constata Reed.
O livro divide-se em 10 capítulos, ensinando como criar uma cultura empresarial baseada em “liberdade e responsabilidade”, na qual a prioridade é a inovação, e não prevenção de erros. Uma síntese das 6 principais lições:
- Desenvolva a densidade de talentos e promova um ambiente de trabalho vibrante
- Estimule acima de tudo, a sinceridade com intuito construtivo
- Remova os controles, por exemplo, aprovações de viagens e despesas
- Desenvolva uma cultura de transparência e compartilhamento de informações
- Incentive os gestores a serem rigorosos com desempenho
- Lidere em vez de controlar, promovendo uma alta autonomia
O desfecho do livro surpreende. Sugere que se evitem modismos e cópias baratas pelos mais afoitos e ávidos por inovação. O autor alerta: se o seu negócio pode gerar riscos à segurança, não hesite: tenha protocolos, procedimentos e controles!
Até mesmo na Netflix, há partes da empresa onde a segurança e a prevenção de erros são os principais objetivos. E destaca que, quando se trata de proteger os funcionários de acidentes e assédio, investem em prevenção de erros, através de treinamentos e linhas diretas de denúncia. Da mesma forma, quando um erro levaria ao desastre, impõem-se regras. Ou seja, há casos específicos, em que a prevenção de erros é claramente mais importante do que a inovação.
E faz um alerta final: “Com isso em mente, você pode considerar seu objetivo com cuidado antes de decidir quando optar por Liberdade com Responsabilidade e quando regras seriam uma opção melhor.” E coloca uma pergunta: “Você está no comando da emergência de um hospital, testando aviões, gerenciando uma mina de carvão ou entregando medicamentos manipulados? O caminho a seguir é o de regras com processos.”
Em contraste, para aqueles que trabalham com economia criativa e inovação, velocidade e flexibilidade são a chave para o sucesso. Nesse caso, protocolos, processos e regras não fazem sentido.
Algumas reflexões
Não há como desconhecer que o destino de muitas empresas se decide quase ao acaso. Levar um “não” foi desagradável naquele momento, mas a salvação da Netflix. Imagine se Antioco tivesse acatado a proposta de Reed e Marc!
O que pesou para o sucesso da Netflix? Na verdade, muitas características dela, cujo efeito se soma. Tendo uma cultura mais flexível – pouco tempo antes, não passava de uma startup – a grande capacidade de adaptação da Netflix foi um diferencial para implementar suas inovações, garantindo assim o seu sucesso.
Sem dúvidas, a densidade de talentos presentes foi essencial para inovação. De fato, essa capacidade criativa é mais crítica em empresas que dependem fortemente de tecnologias voláteis e em rápida evolução.
A densidade de talentos associa-se a uma política vigorosa de sinceridade e transparência. Para que esta mistura explosiva dê certo, é necessário um ambiente de alta confiança. E isso não surge por acaso, pelo contrário, depende muito do clima da empresa, da comunicação e das relações construídas pelos líderes.
Na minha visita, estranhei a ausência de uma política educacional. Só depois vim a entender que, embora não haja um sistema explícito visando a preparar os funcionários, criou-se um clima nas equipes que, informalmente, faz esse papel. Não se constrói uma cultura e gestão do padrão proposto sem pessoas bem treinadas, preparadas e educadas, ainda que tudo resulte de iniciativas pulverizadas pela organização.
Subculturas emergem em função das diferentes facetas organizacionais. A ausência de protocolos na Netflix é aparente. Há clareza com respeito a quais processos manualizar e quais deixar ao sabor das iniciativas de cada um. Embora sua filosofia corporativa e cultura não sejam nada convencionais, há nitidez de quando o foco deve ser nas pessoas e quando deve, sim, ser na especificação dos processos.
* Marisa Eboli é doutora em Administração pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP e especialista em educação corporativa. É professora de graduação e do mestrado profissional na FIA Business School (meboli@usp.br).
Fonte: ESTADÃO