Publicado por Redação em Carreira - 10/06/2021
Como me preparei para passar o bastão para as minhas sucessoras
Desde que me tornei empreendedora, lá em 1988 com meus 26 anos, sabia que não queria ter só isso na minha vida. E por "só" não quero de forma alguma menosprezar o trabalho do empreendedor brasileiro — quem vive essa realidade sabe que a rotina é intensa —, mas compartilhar que, na minha jornada, existiam outros interesses.
Gosto de dizer que, para além do projeto que nasceu como DMRH e se tornou o Grupo Cia de Talentos, eu tinha outros amores. A família, a ONG Instituto Ser+, a startup Bettha.com, a participação em conselhos administrativos, a agenda de palestrante, a atuação como colunista, enfim, tudo isso foi compondo essa minha lista de paixões ao longo do caminho.
Além de ser essa pessoa que carrega no coração vários amores, eu tinha uma ideia muito clara acerca do futuro da Cia de Talentos: queria que ela tivesse vida própria. Quando alguém funda uma empresa, é muito fácil misturar as identidades. O empreendedor vira a empresa, a empresa é o empreendedor.
No entanto, desde cedo, eu tinha a consciência de que não queria que a marca se resumisse ao nome "Sofia Esteves"; meu desejo era que, assim como acontece na criação dos filhos, essa minha "cria" se desenvolvesse, crescesse, amadurecesse e ganhasse independência. Uma empresa perene que tem na sua fundadora a origem, mas não o destino.
Para que essa ideia passasse do campo do desejo para o da realidade, foi necessário construir uma organização assim, voltada para a sua independência e solidez.
A sigla ESG ainda nem existia, mas o foco na sustentabilidade do negócio já estava presente. E, como abordei em outros artigos, sustentabilidade não diz respeito somente ao meio ambiente, mas à governança corporativa e ao desenvolvimento do pilar social — pilar este que traduz a essência do Grupo Cia de Talentos.
Como uma consultoria de desenvolvimento de talentos, claro que também trabalhamos esse aspecto internamente — aqui, em casa de ferreiro, o espeto é de ferro, sim. Na prática, isso se traduziu em um ambiente de trabalho pouco hierarquizado, no qual, independentemente da área de atuação e do cargo, todos têm acesso a qualquer pessoa na empresa, e são estimulados a desenvolver aquele senso de dono que tanto falamos atualmente.
Entre os líderes e o grupo de sócios, o espírito é o mesmo. Não importa quantos anos de Grupo Cia de Talentos a pessoa tem, não importa quanto tempo está naquela cadeira, todos têm direito de compartilhar a sua visão e a opinião de um não é mais importante que a de outro. Aliás, eu mesma já fui voto vencido em algumas reuniões.
Afinal, o que vale no grupo é chegar em um consenso entre a maioria, mas entendemos que, nem sempre, pensaremos de forma igual e tudo bem — falar em diversidade de pensamento é entender esse aspecto da importância de conviver harmonicamente em meio a divergência.
Quis destacar esse aspecto porque entendo que ele é parte fundamental do nosso processo de sucessão. De um lado, os colaboradores são estimulados a, desde cedo, pensar como donos, de outro, quem se encarrega das tomadas de decisão, sabe que, na Cia de Talentos, a voz de todos é importante.
E essa mentalidade, na minha opinião, minimiza uma dificuldade comum na hora de passar o bastão: o desapego. Desapego da vaidade que o cargo às vezes traz, do status que vem com a função e de algo chamado "poder". Se a sucessão pode ser difícil para quem está assumindo o desafio, para quem está abrindo esse espaço também existe a dificuldade de abrir mão do comando - ainda mais quando este é exercido de maneira absoluta.
Não me entenda mal, eu tenho, sim, muito carinho e muito orgulho da minha “cria”, essa empresa que ergui do zero quando era apenas uma jovem profissional entrando em um mercado mais tradicional dominado por homens. É claro que existe um apego afetivo, mas isso é diferente do sentimento de posse.
A verdade é que eu não me sentiria tranquila sabendo que criei uma organização que está atrelada a mim que não é possível desvencilhar, não dá para firmar um passo sequer sem cortar o cordão umbilical. Na minha opinião, não é isso que é ser um bom empreendedor.
Quando, em 2018, comecei a me afastar do dia a dia mais agitado do grupo — e, portanto, do seu comando — senti um alívio muito grande. Ao passar o bastão para a Carla e a Paula, que cresceram na companhia por meio daquele processo de sócios que descrevi anteriormente, senti a tranquilidade de saber que o Grupo Cia de Talentos estava em mãos extremamente competentes. Se algo acontecer comigo, ele vai continuar existindo e, não só isso, mas evoluindo.
É até clichê afirmar que o mundo está em constante transformação quando vivemos um dos momentos mais intensos de mudanças globais, contudo pensar nisso é importante para entender que uma empresa, assim como o ser humano, também precisa mudar e parte desse processo reside no desprendimento de saber quando o seu papel foi cumprido e está na hora de entregar a missão para outro — ou, no caso do Grupo Cia de Talentos, para outras. Isso, no entanto, não precisa significar que a sua jornada acabou.
No dia posterior ao “rito de passagem” da sucessão, eu não me levantei da cama, tomei café da manhã e passei horas de pijama zanzando pela casa à procura do que fazer. Como disse, eu tinha — e tenho — vários amores e é a eles que o meu coração se volta quando uma paixão antiga ganha também os corações de outras pessoas.
Continuo no conselho do Grupo Cia de Talentos e inclusive gosto de contribuir em projetos especiais, ou seja, é claro que o negócio que fundei continuará sendo sempre uma grande paixão, mas ele não é a minha única e não pode pertencer só a mim. Quem ama não aprisiona - e uma empresa sustentável precisa ter vida própria.
Fonte: EXAME