Publicado por Redação em Gestão de Saúde - 26/06/2020
A saúde pós-pandemia: telemedicina pode conquistar o espaço que procurava?
O novo coronavírus superou câncer e enfarte e se tornou a principal causa de mortes diárias no Brasil em 20 de maio. Nesse cenário, a Covid-19 ganha os holofotes na área da saúde, mas não é a única doença ou emergência médica no país — muita gente ainda precisa ir ao hospital ou a consultórios por diversas outras razões.
Com isso, a telemedicina — que já vinha se impondo, apesar da falta de regulamentação no Brasil — surgiu como opção e ganhou espaço mesmo aos olhos do Ministério da Saúde e do CFM (Conselho Federal de Medicina), excepcionalmente durante o período da pandemia. Mais especificamente, as teleconsultas (literalmente uma consulta que, em vez de ocorrer no consultório, é feita por uma chamada online, via WhatsApp ou Zoom) ganharam sinal verde, inclusive com a permissão de que os médicos receitem novos medicamentos e emitam atestados digitalmente.
A normalização da prática pode não ser o único avanço. A tecnologia que envolve inteligência artificial e uso de dados para diagnosticar e acompanhar pacientes vem ganhando espaço — principalmente lá fora. "Uma das coisas que tenho visto como tendência é que não permitiremos que os seres humanos façam trabalhos que podem ser feitos por máquinas, inclusive na medicina", afirma a neurocientista Carla Tieppo, professora da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e membro da equipe da Singularity University Brazil.
COMO ERA: Antes da pandemia do novo coronavírus, a telemedicina era definida no Brasil pela resolução 1.643 de 2002 e, desde então, era alvo de grandes debates no meio médico. Em 2018, foi elaborado um novo texto, que regulamentava inclusive as teleconsultas. Depois de protestos de entidades médicas — que reclamavam principalmente de não terem sido consultadas para a elaboração do texto — a medida foi revogada em 2019. Uma das principais preocupações que ronda o tema é a manutenção da qualidade das consultas. "Até fevereiro [de 2020] tínhamos o seguinte cenário: a regulamentação do CFM impedia de exercer a telemedicina no seu sentido amplo. Não havia uma punição legal, mas [o profissional] poderia ter sanções da classe e poderia deixar de ser médico ao ter o registro cassado", explica Luciano Nader, coordenador médico de telemedicina do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.
Os médicos podiam consultar seus colegas para pedir uma opinião de diagnóstico, por exemplo, no que é chamado de teleconsultoria — ou seja, a telemedicina ficava limitada à relação entre médicos, e não entre médico e paciente. Ainda assim, Nader ressalta que, na prática, o contato ocorria. "No Brasil, até com a regulamentação, há estatísticas que apontam que 85% das pessoas se comunicam de alguma forma com os médicos por meios eletrônicos." A resistência da regulamentação da telemedicina mais ampla, na opinião do médico, vem muito mais do que ele chama de conservadorismo da classe médico no Brasil, e menos dos pacientes que, segundo ele, costumam se adaptar com facilidade às novas tecnologias.
COMO FOI ADAPTADA DURANTE A PANDEMIA: A portaria n° 467, publicada em 23 de março, leva em conta a pandemia de Covid-19 para autorizar:
As ações de telemedicina de interação à distância podem contemplar o atendimento pré-clínico, de suporte assistencial, de consulta, monitoramento e diagnóstico, por meio de tecnologia da informação e comunicação, no âmbito do SUS, bem como na saúde suplementar e privada
Ministério da Saúde, Portaria n° 467
Dias antes, o Conselho Federal de Medicina já havia aprovado três modalidades da telemedicina: teleorientação, quando o profissional de saúde orienta e encaminha pacientes a consultas presenciais se necessário; telemonitoramento, que é o acompanhamento a distância de parâmetros de saúde ou doença; e a teleconsultoria, citada anteriormente. "Agora, a limitação é apenas técnica ou de conhecimento do próprio médico sobre a tecnologia", afirma Nader. Segundo ele, todas as especialidades do Sírio já contam com atendimento via telemedicina, inclusive com alguns profissionais realizando 100% dos atendimentos à distância. "Todos que podem estão fazendo. Alguns não podem apenas porque a tecnologia não permite ou porque não sabem utilizá-la tão bem", explica. Um exemplo é o atendimento de uma paciente que acreditava estar com Covid-19, mas, durante uma consulta por vídeo, o médico teve suspeita alta de apendicite. O diagnóstico só não pôde ser concluído porque nesse caso o exame clínico é essencial, relata Nader. Outro exemplo de ação é a de um hospital infantil de São Paulo que começou a oferecer consultas de urgência via telemedicina, assim como a avaliação pré-anestésica para cirurgias feitas nesse período, evitando visitas presenciais ao máximo.
Se a regulamentação ampla da telemedicina vem ou não para ficar, ainda é cedo para saber, diz Nader.
COMO SERÁ DEPOIS
CENÁRIOS POSITIVOS: Em dias otimistas, o especialista diz acreditar que o contato mais direto dos profissionais de saúde com essa modalidade vai fazê-los perceber que ela tem vários benefícios — desde o atendimento de pacientes em áreas menos acessíveis, até a substituição de um retorno de consulta, que os pacientes desmarcam com frequência. Tieppo, da Santa Casa, diz também ter esperança de que a telemedicina venha para baratear o custo da saúde. "Aumenta o acesso. Estou lá na frente do computador e consigo dar aconselhamento. O paciente tem algo na pele, por exemplo, pronto, resolveu. Quando você pensa em saúde pública, isso te dá um alcance de atendimento inclusive em territórios que não têm acesso. É muito mais fácil criar um posto de atendimento digital do que físico", defende. A especialista vai além, e lembra que o uso da tecnologia na saúde conta com outras ferramentas além do vídeo, mas sempre em equilíbrio com a prática presencial. "Você pode usar inteligência artificial, dados, inclusive para ajudar o médico a fazer diagnósticos. Não significa que vamos poder destruir os consultórios. Vai ter um momento em que vou querer me aconselhar, precisar do olho no olho, e para isso teremos valores diferenciados", afirma.
CENÁRIOS NEGATIVOS: A imposição da telemedicina gera debates sobre a proteção do sigilo médico e dos dados pessoais dos pacientes — que ficam disponíveis em rede e, sem os cuidados adequados, podem ser coletados para futuramente encarecer a contratação de um plano de saúde, por exemplo. A Lei Geral de Proteção de Dados (cuja data de entrada em vigor ainda está em debate na Câmara) é um dos mecanismos para regulamentar essa proteção. Com novas leis e regulamentações ou não, Tieppo e Nader acreditam que a pandemia acelerou a telemedicina. "Os pacientes é que estão se digitalizando. Minha esperança é que, para os médicos, também se quebre um pouco do preconceito", diz Nader.
Fontes: Carla Tieppo, professora PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e membro da equipe da Singularity University Brazil; e Luciano Nader, coordenador médico de telemedicina do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo